quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vida durante a morte?

Não sei até que ponto um sonho à noite, a que normalmente chamamos de "simples", "nada mais que isso", pode ser uma amostra da realidade, ou até mesmo ela própria na sua plenitude: esta noite a programação foi um filme de pancadaria do mais reles que já vi, maiores de 18. Porém, por alguma razão que me transcende por completo, acordei com dores no corpo. A ideia de sonambulismo já a pus de parte. Resta considerar a hipótese de estarmos constantemente acordados, só que, durante algumas horas, essa vivência é conteúdo inconsciente e nós damos-lhe o nome de "sonho". A maior implicação de tudo isto seria eu já ter ressuscitado um sem-número de vezes, dada também a quantidade indeterminada de vezes que já "sonhei" que morria.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício V

Imagine que é um prato, pousado em cima de uma mesa. De repente, alguém o parte a meio. Escreva sobre isso – vestindo, sempre, a “pele” do prato.

            No outro dia decidi fazer contas à vida e fui ao registo civil. Fui mudar de nome.
Ando pelos cabelos, ou pelas bordas, com este nome repugnante que não lembra a ninguém. Não aguento mais.

            João Prato De Plástico?!? Sinceramente!

            Enfim, cheguei lá e perguntei se havia nomes bonitos. Disseram-me está já a sair. Estava tão embaraçado que nem fui capaz de verbalizar aquela asquerosidade de nome. Em vez disso, avancei com a certidão de nascimento. Perguntaram-me para que nome queria mudar. Eu disse que não queria mudar. Só queria que me cortassem o De Plástico.
            Agora sim! Agora sim! O que é que pode correr mal agora? Agora sou um dos Pratos! Tenho sangue azul!
            Hoje há sopinha de legumes. Tem é o cu quente: já estou em brasa. Estou vestido com Bacalhau à Brás. É o faminto do Carlos que vai comer de mim. O miúdo tem 7 anos mas come como se tivesse dois estômagos para saciar.  Tenho sempre um medo terrível quando ele me usa. O tacto nas mãos ainda não é apurado. Além disso, a lentidão com que ele come deixa-me nervoso e entediado. E isso faz-me bater o pé e tremer.
            - Mãe, vou pôr mais bacalhau!
Pegou em mim, cheio de brutidade, e assustou-se com o meu tiritar. Sempre sonhei fazer bungee jumping, pensei eu em alto.
            - MAS ERA COM PROTECÇÃOOOO!!!
Tarde demais para conselhos de utilização ou rótulos estampados com “FRÀGIL”… Logo no dia em que me tornei um prato de primeira qualidade fazem-me uma coisa destas. Em escassos instantes, a minha fase de Lua Cheia alterou para dois Quartos: um Crescente, outro Minguante. Não me consigo mexer. Acho que estou tetraplégico. Não me sentia tão triste desde que fui mudado de prateleira, para longe da Rita Prato de Plástico. A minha única esperança é a Super Cola 3. Mas, o que será de mim agora sem o esparguete a escorregar no meu colo, sem o cocorocó defunto do frango assado a sussurrar-me aos ouvidos, sem a piscina de óleo onde as batatas fritas se refugiam do verão…? Nunca quis que o meu nome fosse misturado com a primeira pessoa do verbo partir no indicativo. Eu era um prato, não um parto! Era… Tudo o que rogo agora, ao deus da cerâmica, é que me ofereçam um funeral justo. Não me abandonem aqui: Varram-me… Varram-me… Oxalá ainda fosse um De Plástico…!

domingo, 13 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício IV

Escreva sobre um homem que, naquele dia, decidiu não tomar o pequeno-almoço. 



Luís praticava virgindade há muito tempo. Não sabia se por preferência, se por não ter outro remédio. Digamos que os pais não se esmeraram propriamente naquela noite de cueca para baixo e lá vai disto. Não restam dúvidas de que a pressa e a perfeição não se dão bem. Eufemismos à parte: andam à batatada.
            Luís era valente, de ombros extensos, com uns peitos de fazer inveja à mãe e umas traseiras possantes, que não cabiam no olho de quem as chacoteava. Invocando de novo o registo eufémico: Luís era assim meio para o forte, forte com f grande. Muito embora jejuasse de carnalidades, não era grande adepto de continências no que toca à paparoca. Aparte da afortunada pança, Luís era feiinho e de poucos asseios. 
            Ao atingir a maioridade, a situação começou a deixar os seus pais indignados: “Oh Maria, não era já mais que tempo dele nos aparecer aí com uma desgraçada de esperanças?”. O pai espicaçou-o um sem-número de vezes. Um dia pegou nele e foram juntos a um cabaret que tresandava a libido por todos os lados. Luís, movido pela castidade de uma vida, tapou as narinas com a blusa. Saiu de lá com um fino na goela mas com o pau a seco. Chegaram a levá-lo ao doutor, ele que o visse, que aquilo era coisa de macumbas, que o miúdo não estava bem, que o pai sempre foi macho e garanhão.
            Passaram-se mais 7 anos. Tem ele 25 agora e já há coisa de um mês que, todo o santo dia, à saída da faculdade, uma ninfa de enfermagem lhe pisca o olho. Há-de ser o sol a encandear, pensou ele. Ontem, abordou-o com um aviso estranho: “O teu problema é falta de fome”. E foi-se embora.
            Luís gostava daquele desporto de sair da cama de manhã e ir para a cozinha. Mas, hoje, decidiu não pequenalmoçar. Foi uma estreia absoluta. Nem meia hora depois, começou a sentir náusea, calafrios, pontadas no estômago, falta de sacaroses. Pela primeira vez, sentiu fome.
            Soou a campainha. Era a senhora enfermeira, toda arregalada. A roda dos alimentos começou a girar, os cereais e derivados e os tubérculos perderam o lugar para o coito. Os seios sabiam-lhe a bacon, mas lembravam-lhe alperces, as nádegas tinham um paladar a ovos mexidos, pareciam-lhe ananases, sem os abrolhos. Só nisto, engordou mais 5 quilos. Desde então, Luís fingiu-se enfermo todos os dias.

domingo, 6 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício III

Combine, num único texto, as seguintes palavras: hipócrita, jarro de água, cidade e manteiga.    

           
            A minha avó sempre gostou de cozinhar para mim. Muita culpa tive eu: sempre que me preparava grandes jantaradas, mesmo quando o menu era escasso e humilde, sentava-se, abstendo-se, ao meu lado e via-me deleitado, como se fosse o único a ter acesso ao paraíso, na Terra. Essa era a refeição dela. Já eu tinha os lábios protegidos do suor pelo bigodinho aloirado, e uns rios de penugem, que nasciam abaixo das orelhas e desaguavam perto do queixo, ainda ela guardava um babete na gaveta da cozinha, reservado para mim. Dava sempre jeito. Eu não conseguia esconder a satisfação que aqueles repastos me proporcionavam. E sempre discordei daqueles mentirosos impertinentes que batem, impiedosa e ininterruptamente, no ceguinho com aquela das omeletas não se fazerem sem ovos. Ou tomam juízo de vez, ou arranjem uma avó como a minha.
            A idoneidade dela ia desde os cheeseburgers até ás divinais migas à alentejana. Mas, havia um pitéu que ela me fazia quando sabia que eu estava triste. Nessas alturas dizia-me assim: Vais ver que ficas como novo.
            Eu ria-me. A seguir, entrava nas portadas do éden com aquela salada-russa: era o paladar, a consistência, o secretismo, a boa-disposição. Enquanto me criava, ela brincava com os ingredientes: fazia olhinhos com as ervilhas, punha o atum e as batatas a andar de avião…
            Um dia, quando o rio de penugem chegou à patente de oceano, perguntei-lhe: Vó, como é que se faz a salada-russa?
            Ela fez um trejeito com os sobrolhos de ligeira reprovação e disse: Oh filho, a avó não sabe, inventa. A única receita é não haver receita. Vale tudo.
            Nesse dia, eu fui a pé para casa com versos de Pessoa a fazerem-me companhia: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fiquei desgostoso com aquilo e decidi auto-comiserar-me. Desde aí, comecei um jejum de pívias e salada-russa.
            25 De Abril: Entretanto, hoje, três anos depois, acordei com desejos de grávida. Os meus autores julgaram-me doido. Eu tolerei: lembrei-me de ter pensado o mesmo da minha velhota cozinheira, na altura em que me ensinou a confeccionar a dita salgalhada. Aprontei-me e fui à cidade buscar ingredientes.
            A meio do caminho, telefona-me a minha avó. Impaciente, desboquei-me logo. Pergunta-me ela: Então e como vais fazer filhote?
            Eu mostrei-lhe o bom discípulo que sou e ripostei: Então, arranjo um quilinho de hipócritas, aplico-lhes um jarro de água, deixo-os em banho-maria, unto-os de manteiga e voilà

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício II

Uma mulher tremendamente determinada e focalizada, obsessivamente, na sua carreira, está no aeroporto quando é anunciado que o voo que a iria levar para o outro lado do mundo, para o encontro mais importante da sua vida profissional até hoje, foi cancelado. O que faz ela agora?





O peido americano



            Ela era Helena. Ele era Camilo, posse dela.
            Camilo tem cu fidalgo. Helena é metade pega, metade esposa dele. Ele bem sabe mas, gosta do bolor a enfeitar as nalgas: compara-as ao Camembert. Esta manhã, as pernas de Helena acordaram para o lado do queijo: tiveram vómitos e desmaiaram. Helena enervou-se. Tinha as pressas a morderem-lhe os minutos do relógio, que avançavam como segundos. Camilo ficou a coalhar nos lençóis.
            O voo estava marcado para as 15:00h. Helena queria apresentar-se na formatura logo às 13:00h. A assiduidade definia-a melhor que o próprio nome, o mérito era o seu pequeno-almoço todos os dias, “dedicação” ocupava-lhe um dicionário inteiro. O taxista elogiou-lhe o par de pernas, ao deixá-la na Portela. Ela foi-lhe dar a gorjeta atrás da porta duma casa de banho.
- Sra. Helena, temos a informar-lhe que, lamentavelmente, o seu voo terá sido cancelado, por motivos ainda a apurar.
- Não posso acreditar! Eu quero falar com o seu superior, exijo que alguém assuma as responsabilidades!
            Tratava-se, provavelmente, do dia mais importante na vida de Helena, talvez, em empate, duvidoso, com o das suas longínquas núpcias. Em boa verdade, nos últimos tempos, a evidência de uma desavença entre casamento e ofício era cada vez maior, com vantagem clara para a segunda, uma vez que, alicerçava, indubitavelmente, a conservação da outra. E, este arranjo, decerto viria colmatar esse desacato, ao mesmo tempo que, acrescentaria, aqui e ali, mais uns rios de bolor ao cu de Camilo – o parasita.
            Helena nunca tinha variado muito de oxigénios: Portugal conhecia-a desde que nasceu, até agora. Não obstante a notável desenvoltura com que acarretava o seu impudico engenho, e o reconhecimento legitimado que se lhe prestava nas hostes elitistas, jamais os seus préstimos haviam sido requeridos por “fomes” transfronteiriças: até hoje! Ir para Itália era, para Helena, como atravessar o globo duma ponta à outra. Mas, a sorte hoje não estava do lado de Berlusconi.
            Num dos televisores do aeroporto ouvia-se da suspeita de uma flatulência nos Estados Unidos. A mulher do check-in reforçou esta tese:
- Sra. Helena, antes de mais, as nossas mais sinceras desculpas pelo sucedido. Acabo de ser informada que tem à sua espera um outro voo, particular, com partida agendada para 5 minutos mais tarde.
            Helena, a pega de luxo, provou, naquela noite, a prosperidade dos lençóis da White House.

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício I

Um dia, chega a casa e começa a ouvir as mensagens que tem no seu gravador de chamadas. Quando chega à terceira mensagem, fica parado, sem reacção. Comece a história a partir daqui. 





Eu disse adeus ao meu pai

           

            Eu pouco ou nada percebia daquela linguagem, apressada e timoneira. Oh homem explique-se lá com calma faça favor: deu-me vontade de dizer. Não sei se pelo tremelico, se pelo atropelamento, se pela combustão, mas aquelas letras soltas, aqueles ditongos de consoantes, aquelas sílabas desordenadas, não formavam palavras inteligíveis.
             Cá, na minha redoma de ignorância, ousei pensar: deve ser chinês, com certeza. Talvez um português achinesado. Quem falava assim era o meu afilhado, com dois anos ainda mal feitos. Considerei essa hipótese: verdade seja dita: é meu afilhado mas é esquisito: em vez das bonecadas, das “petas” (como ele lhe chama porque ainda não é capaz de produzir a sílaba “chu”), das Cerelaques, o miúdo passava o dia agarrado ao maldito telefone. Mas, a esquisitice também não chega a tanto: o tom de voz era arrojado, constituído, varonil, de bagaço: como quem coça a barba de um mês.
            Foram, os primeiros dois minutos, pura barulheira. Eu já tinha ouvido cães a dialogar e lembrei-me disso. Na altura questionei-me se era possível que se percebessem. No latido a seguir, ouvi um sim, então, fiquei aliviado do cruel pensamento de gostar de devorar ossos e perseguir gatos parvos. Porque eu não entendia. Até que, alguns dos latidos começaram a tornar-se palavras corpóreas: ouvi “pai”, ouvi “hora”, ouvi “partir”… Fiz de novo um puzzle, passada meia vida minha: “Pai-hora-partir”? A falta de prática veio ao de cima. “Hora-pai-partir”?
            A alcatifa abraçou-me inteiro. Depois disso, comecei a flutuar no oceano que libertei pelos porões estreitos. Eu queria fazer-lhe uma pergunta, a minha mãe ensinou-me a não falar com desconhecidos. Ele nunca ia ouvir-me perguntar-lhe o nome. Ele sempre soube o meu, sem que tivesse de me perguntar. Ele mesmo me nomeou. No fim do extenso solilóquio, disse que estava a ligar do céu e deixou um post-scriptum verbalizado. Comecei a ouvir as interferências a transfigurar de novo o idioma. Ouvi “voltar”, ouvi “ela”…
            Demorei-me ali uma eternidade incompleta. Acordei, ainda zonzo. O absinto solidificou-se pelo meu corpo. Materializou-se. O coração ardeu-me. Movi-me, ziguezagueando, para o jardim. A minha mãe estava a colher molhinhos de salsa. A salsa condimentou o carinho que trocámos. Disse-lhe: Mãe, amo-te. Colhi-a a ela da terra fértil, peguei nuns molhos de mãe e levei para casa. Comecei a cheirá-la todos os dias.
            Deus desligou o telefone e, a partir dali, a minha mãe dormiu sozinha.


           

             

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O sussurro do Ipiranga

Pela primeira vez, em 41 e 43 anos das suas respectivas vidas, os melhores pai e mãe de que há memória, presenciaram um momento deveras solene, um "marco histórico", como eles mesmos lhe chamaram: os dois sentados no banco de trás do seu próprio carro, com o filho mais velho a conduzi-los e o mais novo em posiçao copiloto. 
Caso, mais que propício, para trazer à tona uma das lengalengas mais lendárias no "reino dos grandes": "parece que foi ontem que andávamos com ele ao colo". "Parece que foi ontem..." A mim custa-me entender que este "ontem" seja tão equivalente ao ontem que digeriu as minhas últimas 24 horas de vida. Eles dizem-no como se assim fosse. E, hoje, eu próprio me senti a envelhecer. 
O caricato da situação foi que, ainda que lhes causasse estranheza, assumiram a sensação de um certo bem-estar. O meu homónimo pai falou em "maior conforto dos bancos traseiros". De facto, o conceito de bom é extremamente instável e imprevisível. Isto porque, no meu pensamento logo me ocorreu a resposta à sua constatação: "Desculpa pai mas, para mim, ir aqui agarrado ao volante sabe muito melhor". Ainda assim, escolhi o caminho do silêncio. Essa discussão não nos ia levar a lado nenhum. 
Então, em lugar de gastar o meu latim morto, tratei de me auto-coroar, aclamar-me rei e, logo ali, reunir a minha corte, enunciar os meus súbditos, calendarizar os meus opulentos banquetes, convidar os saltimbancos, os flautistas, os bobos, os rapsodos. 
Tentei magicar o que fluiria no longínquo e imerso mundo do meu copiloto, revestir-me, de novo, daquelas 12 primaveras com cara de verão de dia, com cara de inverno à noite. Era demais para um momento só. Começou a desenhar-se na minha consciência um sinal de Stop: o controlo podia agora morar nas minhas mãos mas, a experiência estava longe de me pertencer como aos dois que eu mesmo carregava nos ombros. Procurei travar, com o motor, o pedacinho de vaidade que esteve prestes a transbordar. Liguei os 4 piscas, assinalei a minha presença, accionei o travão de mão, soprei o balão e acusou mais de 1,5 g/l de auto-estima. Os agentes de autoridade (PSP: Pais Sempre Presentes) fecharam os olhos. 
No caminho de regresso, para limpar a vergonha que me assombrava e, de alguma maneira, provar que merecia aquela medalha de confiança, aumentei os decibéis do rádio e diminui os decibéis de adrenalina e, voltei, pegado pelo colo.  





domingo, 30 de janeiro de 2011

À minha avó, aniversariante


Avó, estas palavras são para ti. São palavras limpas, enxaguadas pela água mais pura: aquela que escorre do coração. São palavras que escrevo sem preocupações, sem procurar que pareçam bonitas. Preocupa-me que te soem verdadeiras e que te alcancem mais que os teus ouvidos. Preocupa-me que te alcancem a alma, para que saibas que nasceram algures num recôndito da minha. E a primeira palavra que me ocorre é uma muito simples: obrigado. Obrigado é a palavra que melhor se encaixa em ti. É aquela palavra que todas as pessoas que te estão à tua volta te deveriam dizer. Porque tu existes para que os outros te agradeçam a tua existência. Aquilo que, o grande coração que tu tens, te leva a fazer, é algo indescritível. E nenhuma palavra, por mais completa, pode adjectivá-lo fielmente.
Não te vou chamar perfeita, querida avó. Isso seria mentir-te. Aproveito para te dizer o que acho. Eu acho que tu és muito teimosa. Teimosa talvez seja pouco. Tu és casmurra. Sim é isso. E como és casmurra, às vezes és chata. E isso torna-te imperfeita. Mas, no fundo, não encontro muito mais que te possa apontar. Acho que esse é, provavelmente, o teu único e grande defeito, o suficiente para fazer de ti um verdadeiro ser humano. Mas, o que te torna diferente dos outros seres humanos é aquilo que, para mim, é o maior dom que alguém pode ter: o dom do dar.
Por muitos anos que possa viver, não serão nunca suficientes para te poder retribuir aquilo que tu já me deste até hoje. És, sem qualquer dúvida, a melhor avó à face da terra.
Parabéns Maria da Saúde. Amo-te.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Da Felicidade

Ele amava-a de verdade,
Viram-se pela primeira vez,
No jardim-de-infância,
Ele apanhava-lhe a chucha,
Sempre que Ela esbracejava,
Choro de ira, fome, dor, desconforto,
Ele assistia ao mudar da sua fralda,
Abdicava do seu brinquedo-deus,
Quando Ela se fartava de bonecas,
Ele abraçava as suas birras com força,
Era quem primeiro soprava as velas,
No dia dos aniversários Dela,
Ele roubava uma vela ao bolo,
E abrigava-a na concha da mão Dela,
Dizia-lhe para se pôr debaixo da mesa,
Que a mordesse e pedisse um desejo,
Ele queria que ela o desejasse a Ele,
Que o seu nome fosse ouvido pela vela,
Queria ir conhecer a lâmpada do génio,
Imaginava uma aparição futura,
Que a fizesse humedecer o babete,
Um dia, ele bateu no Kiko, arranhou-o,
O Kiko fez-lhe um desenho a Ela,
Era uma casa, uma árvore, duas nuvens,
Um sol no meio delas e uns rabiscos,
Que se chamavam passarinhos,
Ele pensou que o sol fosse um coração,
O Kiko não encontrou o lápis amarelo,
Ela guardou o desenho no bibe,
Ele foi para a sala do castigo,
Enquanto lá esteve fez um desenho,
Ela gostou mais do desenho do Kiko,
E o Kiko levou dois arranhões para casa,
A Guida gostava dos caracóis do Kiko,
O Kiko achava a Guida muito ranhosa,
A Guida comia puré de batata à mão,
E o Kiko era filho de engenheiros,
A Guida andava aos segredos com Ele,
Ele pediu-lhe que brincasse com o Kiko,
E a Guida disse-lhe para ir brincar com Ela,
Ele fez a primária sentado na mesa Dela,
No primeiro ciclo almoçava sempre com Ela,
No secundário levava-a a pé até casa,
Ele bebia da mesma água que Ela,
Ele era dono do lugar Dela no cinema,
Ele arranjava-lhe flores para se redimir,
Ele fazia-lhe serenatas à janela,
Ele dizia-lhe que Ela era muito bonita,
Ele acolhia gripes para lhe matar o frio a Ela,
Ele ficava de pé até Ela estar sentada,
Ele escrevia-lhe cartas de semana a semana,
Ela entrava todas as noites nos sonhos Dele,
Ele queria tomá-la para sua esposa,
Na cara Dela Ele viu escrito um Não,
Ela tinha um diário debaixo da cama,
O diário sentiu que Ela não o queria,
O diário folheava-se no seu rosto,
Ele imaginou pôr-lhe as malas à porta de casa,
Ou mandá-la ir dormir para o sofá,
Imaginou falar com o advogado,
Depois abandonou os estudos,
Encontrou uma vez Guida na rua,
Atrás dela vinha Kiko numa correria,
Ele arranjou trabalho numa mercearia,
Realizou novos filmes para os seus sonhos,
Ele foi à praia e já não escreveu o nome Dela na areia,
Ele fazia-se de cego quando via a moldura Dela,
O lume serviu para o churrasco das memórias,
Nos seus lábios descobriu o primeiro coito,
No dia seguinte Ela foi comprar pão fresco,
O pão fresco tornou-se numa desculpa,
Ele estava a vê-la mas não se lembrava Dela,
Ela disse que o amava e deixou-lhe gorjeta,
O Kiko e a Guida tinham cara de maus. 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O bispo que não sabia ave-marias



Blim-blém!
Não foi um galo. A meia-noite entrou nos peitos dos crentes, forte e feia. Entrou e saiu, ventanias de dezembro.

Já estava solitária a lua, sem estrelas para se pôr a contar, e o sol calou-se: tinham falado durante todo o dia, estava cansado, bocejando, deixou-se dormir. Ela pensou em tocar-lhe no ombro, fazê-lo levantar-se, queria paleio: coisas de luas: vá-se lá entender…! Sentiu-se nua, a lua. Começou a correr desesperada. Andava à procura de nuvens, restos de água mal liquefeita, sobras de chuvas meio gasosas.
Esta era capaz de servir para um par de cuecas; e estas duas assentam que nem luvas nos bicos dos seios, sim, porque as luas têm seios; esta fica a matar nas perninhas esguias; esta dava um óptimo gorro e faz pendant com aquela que enche as medidas ao tronco – foi assim que se inventou a sweatshirt; Nuvens estavam em saldos nesta época e as luas andavam todas doidas só de saber. Havia nuvens a oitenta porcento, valha-nos deus! O sol também estava despido mas, a dormir, nem se apercebeu. E ela trouxe para ele também. Ele gostava dela por isso. Partilhava tudo. O que é dela é dele. O que é dele é de quem pegar.
Voltou carregada de sacos, com dor nas costas, estrias. A vontade de o acordar voltou também. Tinha agora uma desculpa, ao menos. Pode ser que ele goste e com o entusiasmo nem se arrelie. Mas ele não pode acordar a uma hora destas, falou ao seu escasso consciente. Muito escasso. Acordou-o. A seguir houve dilúvios.
Depois disso, foram-se os dois embora: um para cada lado, os dois para um canto do céu, virados para a parede. Ali até amanhã. Era meia-noite e meio-dia.
Quando estavam a cumprir castigo, começaram a ler pensamentos: agiam por telepatia, riam-se de piadas por telepatia, comiam maçãs por telepatia, amavam-se por telepatia. Ela num canto, ele noutro: cruz, bola, cruz, bola, cruz, bola, cruz: ganhou ela! Desde que se conheciam que passavam noites em branco por causa do jogo do galo. Ou melhor, noites em branco passava-as ela que, ele jogava de dia. Não tinham outro remédio: durante a noite uma cruzinha; na manhã seguinte, ele respondia com a bola. Ficava sempre com a bola porque se achava parecido a ela.
Desta vez, como estavam os dois a pé, podiam jogar mano-a-mano.

Cá em baixo, já se tinham comido as couves, o bacalhau, a cabidela, as filhoses, os sonhos, as rabanadas, as fatias douradas. Jogou-se às cartas, sueca, à moeda, esteve-se à lareira, ver o gordo de vermelho chegar e emagrecer a saca que carregava às costas. Foi quando a lua acordou o pobre do sol que as casas ficaram pálidas. Pareciam mal dispostas, enjoadas, a precisar de águas com gás, chás de camomila.

A matriz lá do sítio estava corcunda: suportava às costas o peso dos efeitos de luz, com desenhos do menino Jesus, e da estrela dos magos, e da vaca, do burro, do José e da Virgem. O presépio era daqueles humanos, humanos quase estátua, coitados. A cruz destilada no topo do templo olhava para a transversal, cheia de invejas: um louco qualquer, sem família para estas alturas, pôs-se a vender o peixe, a ver se enchia o estômago: algodões-doces e pipocas daquelas que fazem arco-íris. Se pudesse tinha-lhe acendido uma vela…
Lá dentro, os cânticos, as odes, os recitais, os cortejos episcopais, tomavam lugar nas almas­-de-lua, nos corações ocos, nos vazios repletos de nada. Os lábios escravos exclamavam aleluias e graças a deus.
A Dª. Clotilde, aí para as curvas, deixou-se prostrar. Criava raízes de joelhos dobrados ante o altar opulento, vistoso, apinhado de tecidos felpudos bordados com tons de dourado, prata. Todos a conheciam pelo aparato da penitência que ano após ano impingia na sua auto-estima descontrolada, ética enferma. Era cliente habitual dos confessionários, fã número um, gostava de hóstia mais que pão, não se lavava em casa para tomar banho de água benta, trabalhava para ver velas acesas. Em poucas palavras: era a mais devota.
A missa teve de esperar pelo bispo. O galo adormeceu, entretanto. Os paroquianos andavam a conspirar contra o vadio do bispo, assim o intitulavam. Achavam indecente que já fosse o segundo mês seguido que as missas se atrasavam porque ele tinha tido um furo no pneu do carro, ou porque tinha ido tratar do pai que estava para morrer de cancro no fígado, os senhores doutores deram-lhe vinte e quatro horas, ou porque o Senhor lhe dera uma visão de última hora para ir socorrer um pedinte qualquer. Bem sabia ele que a enormíssima fidelidade das ovelhas não pagava prestação de carro nenhum. E o velho bêbado já tinha ido conhecer o paraíso há cinco meses atrás. Já para não dizer que as dez dioptrias no olho direito não deixavam perceber visão nenhuma. E o Senhor tinha deixado de falar com ele também já ia para uns mesinhos. Quando chegou eram um quarto para daqui a bocado. Escandaloso. Pensavam as tosquiadas ovelhas para si: Há-de nos tirar a lã que já não temos. Já bem bastava o aumento do IVA. Com tanta indulgência há que apertar bem o cinto. Chegou a correr um abaixo-assinado em plena Missa de Todos os Santos para excomungar o bispo. Mas já se sabe: fica mal fazer uma coisa dessas ao homem, além disso, cabe ao Senhor todo o juízo. Esta era a voz de Clotilde.
Américo gostava sempre de saudar um a um todos os fiéis. De inicio a coisa ainda pegava. Até parecia alegrar o povo. Agora tomavam-na já como um descargo de consciência. Mas ele não vacilou. Quem não deve não teme. Seguiu-se a procissão, cheia de floreados, anjos brancos aqui e acolá, acompanhada pelo canto pouco afinado do hino guardado para ocasiões destas. Os ministros e os presbíteros carregavam os estandartes, de punho cerrado, passada lenta. Américo liderava o cortejo, com um livro qualquer asfixiado entre o braço e o lombo direitos. Era grandalhão, tinha que se alimentar bem, era vermelho e tinha uma poça de pó no topo da capa.
O ar sabia a incenso, sabia mal.
Pisou o altar quase meia hora depois. Beijou-o e olhou para o Cristo ensanguentado. Podia jurar que, nesse preciso instante, tinha-lhe visto correr uma ou duas lágrimas face abaixo. Mas isso pensou para si e só contou aos seus botões. Mais sabia ele que já ninguém acreditava nessas patetices. Ele estava lá pregado, como está há carradas de séculos: os braços à espera de qualquer coisa, descaídos, cansados; as pernas amarrotadas, raquíticas, atrofiadas; a cabeça tombada como se retribuísse pelos aplausos de uma plateia; nem mudou os escassos trapos que lhe cobrem o maior jejum; porque raio é que havia de começar a chorar só ao fim de mais de dois milénios de puro sofrimento? Quanto muito que se risse! Sempre mudava de humor. Ainda ninguém se lembrou de vir com essa, caso contrário, de certeza que tinha pegado.
Fez o sinal da cruz bem ao alto. Teve sorte que ninguém reparou que assinalou primeiro o lado direito, em vez do esquerdo.
Abriu o livro grandalhão, despertado de um sono profundo, anestesiado.
BANG!!!
Também não foi um galo. Mas bem que se podia pensar que era a vinda prometida do Messias. Assim parecia. O livro escorregou das mãos do bispo e caiu-lhe aos pés. O rebanho assomou-se numa chiadeira, que não era de pânico nem de euforia. Era medo. Talvez inquietude. De certo que foi um cagaço enorme. Clotilde desconfiava. Tinha faro apurado para estas coisas. Não vinha de longe. Se Américo, em vez de reunir ovelhas, se dedicasse a apanhar os lobos maus que por ai há, Clotilde era uma espécie de cão-polícia que o seguia nas caçadas. Cheirava-lhe a sangue fresco, vento forte, porcelana partida, não, mármore, sim…

Entretanto, o sol e a lua cansaram-se de jogar ao galo. Ela ganhava sempre. Ele deixava-a ganhar. Fazia-a feliz. Mas ela era esperta. E ele também. Sabia que luas bem humoradas são logo outra conversa. Ela pensava que jogava melhor que ele. E ele pensava que era mais esperto que ela. Estavam fartos do castigo.
Pé ante pé, de devagarinho a parado, de silêncio a mudez, foi a lua ter com o sol. Ele já sabia. Não ficou surpreso. Ela era destas coisas. E ele refastelava-se. Quando ela se abeirou dele reparou que estava a estrear a roupa nova. Pareceu-lhe outro sol: menos brilhante, mais triste, menos quente, mais egoísta. Sou eu, apressou-se em explicar ele. Ela não acreditou. Ele deixou-se rir. Riram-se os dois. Não era um riso. Era escárnio.



A Dª Clotilde era caprichosa. E hoje de manhã era boa altura para confissões. Confessava-se sempre ao bispo Américo. Ele bem que lhe dizia que o Bispo João também era meigo. Mas então… coisas de luas…
Mas até se percebe: ele era benevolente, não a massacrava demais, tinha uma voz mansa, muito sussurrante, bonita, ao gosto dela, gostava de um bom torresmo como ela. Às vezes falavam disso. Quando o pecado era saldado parecia-lhes bem falar de torresmos. Mas não era só isso. Américo também se confessava a ela de vez em quando. Era coisa pouca: ou porque não resistia ao copinho de tinto ao almoço, ou porque não fazia o que o “Sotôr” mandava. É que a diabetes não perdoa Sr. Américo. Ele fazia ouvidos de mercador. Sempre foi bom de açúcares, geleias, marmeladas, doce de abóbora fazia-o babar-se.
Nem sei por onde hei-de começar Sr. Bispo Américo. Em cinquenta anos de vida nunca senti tanta culpa. Acho que Deus Nosso Senhor não me vai perdoar esta. Pelo menos tão cedo. Irmã Clotilde queira fazer o favor de me contar o sucedido. Deus Nosso Senhor perdoa-nos sempre. Ah… Não sei Sr. Bispo. Desta vez o caso está malparado. Olhe irmã, são trinta antes de deitar e outros trinta quando se levantar e não se fala mais nisso. O Sr. acha que isso é suficiente? É remédio santo irmã Clotilde, remédio santo.
Clotilde sentiu uma comichão a crescer-lhe na barriga, subindo, roçando-lhe o estômago. Não sabia se havia de ficar aliviada ou se devia lá voltar e pôr os pontos nos i´s. Decidiu que não. Afinal de contas, eram só trinta à noite e outros trinta pela manhã, nada que não tivesse já feito. É certo que a iniquidade agora era mais aguda que o costume mas, ao menos, arrumava já a questão.
O Bispo Américo fechava a loja por hoje. Tinha mais que fazer que andar ali a arcar com prantos a toda a hora. Fechou-se no seu camarim clerical. Estava suado, cheiro a cavalo, corpo a pedir água. Eram aqueles trajes. Que coisa chata. O homem já era bem criado, qual tentador doce de abóbora, o médico já o tinha avisado que tanto peso castigava as costas, agora ainda tem que andar com toneladas de pano no corpo! E mais! Que aquele livro grandalhão era quase parte da indumentária. Era um peso… Se faz favor! Uns irmãos cochicheiros da nave lateral já tinham dado conta: O homem não é bom da cabeça. Para que raio é aquele espalhafato todo?
Na verdade, lá na paróquia só se sabia quem era o Bispo Américo por isso mesmo. Mal dava para se lhe verem os olhos. Ali havia gato, cão, ou rato, ou um bicho qualquer. Mas que não era normal, não era.
Américo era um tipo um bocado para o estranho. Quer dizer, não é bem estranho. Pronto, tinha as suas manhas, como todos nós. Talvez fosse do olho de vidro. Ou da cicatriz da apendicite. Hum… Não, aquilo havia ali mesmo qualquer coisa que estava fora do sítio.
Ele era homem para os seus dois metros, sem exageros. Quando brincavam com ele por causa disso, costumava comparar-se ao Golias. Na verdade, ele era baixote, mirrado, quase anão. Não lhe servia aquela máxima: um homem grande e um grande homem. Era mais um homem grande e um pequeno homem. E, aí, o paralelismo com Golias encaixava na perfeição: era um colosso mas foi abaixo com um beijo duma flor. Fora isso, tinha uma permanente que lhe cobria o cachaço. Não devia ter mais que cinquenta e cinco. Era o que diziam dele quando o viam. Não dizia a idade a ninguém Américo. Superstições. A mãe Esmeralda encheu-lhe a cabeça dessas coisas quando era pequeno: guarda-chuvas dentro de casa não; nem varrer a casa à noite; e, especialmente, não passar debaixo de um escadote. Dizia que quem passasse não se casava. Ele até se deixava levar e evitava coisas dessas. Ganhou as mesmas: nunca passou debaixo dum escadote e deu em padre.
Nesse dia, saiu da igreja a correr.

Pás pás-pás-pás pás pás-pás!
Já vai Francisco, já vai!
Aquele toque dispensava apresentações. Sempre se poupava um daqueles momentos um tudo-nada caricatos: quem é? Sou eu. Eu quem? EU!
A casa de Clotilde era do povo. Ao fim de semana parecia o centro de convívio lá da junta. Era capaz de encher mais. Por isso, tinha combinado aquela artimanha com Francisco logo da primeira vez que a foi buscar. Era melhor assim. Não fosse chegar ele e haver gente em casa. E escusava ela de aparecer à porta pouco apresentável, indecente. A batucada de alerta não só lhe dizia quem estava do outro lado como lhe piscava um olho maroto para dar a última olhadela no espelho. Assim fez agora. Tinha uns cabelos em canudos que a mãe lhe deixou, nem a idade lhos roubou. Andava sempre de pretos. Enviuvou cedo. Francisco dizia-lhe que não gostava de a ver assim. Ela mudava-se só por ele.
Já estava a pensar que não vinhas… Ele encolheu os ombros. Era quase mudo.
Hoje o passeio era no jardim. Clotilde queria praia, diálogos com gaivotas, areia nos sapatos, mar dentro de búzios, castelos, ecos nas grutas. Não havia. A ementa era limitada. Para além do jardim, só a tasca do Gameiro. Mas aí vai meio mundo. Clotilde queria descrição. O que é que iam pensar se a vissem! Por isso, o jardim era como bitoque: não havendo mais nada, é o que se come. E, às vezes, o melhor era ficar em casa.
A meio da caminhada, uma pedra. Cruzaram os braços. Clotilde pulou dentro de si. Cá fora fazia-se muito séria. Apanharam-na. Lembrou-se de quando tinha dez anos e atirava pedras às galinhas e aos pombos. Ria-se muito disso. Teve receio que Francisco a largasse e desistiu da ideia. As galinhas e os pombos ficavam para mais tarde. Agora estava bem assim. Durante os passeios conversavam de culinária, de barcos, de fogos-de-artifício, de ilhas desertas, de luas-de-mel. Desta vez, Clotilde tinha puxado a brasa à sua sardinha: Não podemos continuar a encontrar-nos Francisco. Que conversa é essa Maria? Maria era sobrenome de Clotilde. E ela preferia que ele a tratasse por Maria. Na verdade, nunca lhe chegou a contar que era Clotilde Maria. Achava que era nome demasiado de velha. Pesado, rude. Clotilde era mais três ou quatro rugas na cara. Maria fica bem aos cinco anos e aos oitenta. É indiferente. Maria era lábios carnudos, vermelho cintilante. Assim, imaginava que, se porventura ele contasse aos amigos da sua aventura, pudessem pensar que era uma moçoila com vinte e poucos. Fazia-a sentir-se bem. Até casa, o diálogo foi só entre as árvores e os pássaros. Maria acanhou-se e emudeceu.
Hoje estive no confessionário. Ela contava-lhe sempre que lá ia. Ele escutava-a, muito mudo, como se de nova confissão se tratasse. O Bispo Américo mandou-me dizer trinta pais-nosso à noite, mais trinta de manhãzinha.
Francisco decidiu-se passar ali o serão. Queria dizer os trinta pais-nosso junto de Maria. Daí lavava já as suas mãos. Ela disse primeiro que não. Já estava a ficar tarde. Depois, ele pôs-se de joelhos. Ela vacilou. Fizeram à vez: ela dizia um, ele dizia outro, até fazerem os trinta. Pareciam a lua e o sol a jogar ao galo. Quando deram por eles, já tinham dito quase cem. Foi praticamente maquinal. Talvez sentissem que havia mais pecado para limpar. Nisto já era meia-noite, e o sol estava a ressonar. Maria nunca se costumava deitar para lá das dez, máximo dez e meia. Desta vez passa, pensou. Rezou mais dez pais-nosso, cinco para cada hora extra. Adormeceu. Antes, Francisco desejou-lhe boas noites. Falava pouco, tinha um timbre rouco, forçado, parecia cansado. Na manhã seguinte, a palavra amém foi dita trinta vezes. A casa de Maria tinha uma atmosfera esquisita. De manhã o aroma era de Jordão, à noite cheirava a Sodomas e Gomorras e a meio da tarde havia um odor a hipocrisia, lenha queimada. Agora, cheirava a isso mesmo.
Clotilde saiu mal acabou a pescada cozida com a batata e os brócolos. Na porta ainda se sentia a saída fresca de Francisco. Sentia-o ela. Foi direito à Matriz de Vossa Senhora dos Aflitos.
Sr. Bispo Américo… Diga lá, minha irmã. Fez o que lhe disse? Fiz sim Sr. Bispo. E então? Sente-se melhor agora? Nem por isso. Quer dizer, faz-me sempre bem mas… Mas, o quê irmã Clotilde? Sr. Bispo a verdade é que o assunto é mais grave que o que parecia. Quer dizer, portanto, que os trinta à noite e de manhã não são o bastante? Sr. Bispo… Há dois meses que me encontro, às escondidas, com um homem. Estou a ver… Mas, irmã, ambos sabemos que o seu marido, Deus o tenha, já faleceu há um bom par de décadas. O problema é que ele é casado, Sr. Bispo. Disse-lhe ele? Disse, sim. Porque a irmã lhe perguntou ou foi franco desde início? Perguntei-lhe eu. Disse-lhe com quem era casado, se tinha filhos? Não me falou nada de mulher nenhuma. E filhos, disse que não queria, que já estava velho para isso. E o que faz a irmã quando se encontra com esse…? Francisco. O que faz com o Francisco? Costumamos ir passear para o jardim, Sr. Bispo. Só? Sim, de vez em quando fica lá em casa para o jantar mas, de resto… mais nada. Mas, então, não vejo onde está o problema Irmã Clotilde. Ai, Sr. Bispo, o problema é que eu pareço uma menina. Eu gosto dele. Irmã, vamos experimentar duplicar a prece. Ou, talvez, triplicar. Sim, é isso. Noventa pais-nosso à noitinha e noventa quando se levantar.
O terço de Clotilde já não tinha cor. Estava exausto e suado. Estava farto dos dedos de Clotilde e de pais-nosso. Clotilde regressou a casa. O perfume hipócrita ainda pairava no ar, meio suculento, viscoso. Mas, estava prestes a sucumbir. Quando passou a porta, de boca semicerrada, reconheceu um travo a Sodoma e Gomorra. Ainda era pouco perceptível. Francisco vinha por volta das sete e meia da tarde. Maria começava já os preparativos. Mesa para dois. Quatro, com as velas. Pouca luz. Toalha branca, traçado avermelhado, rosas. O podre da madeira velha da mesa contrastava com o requinte da sapateira, do camarão cercado de rodelas de limão, das ostras, do caviar, da terrina com um caldo de alho francês, pezinhos de coentrada, cebolas picadas. A última vez que tinha assistido a um banquete daquela categoria fora no seu casamento. Nesse dia estava com enjoos, aqueles nervos que tiram a fome. Hoje também. Apesar de não se ir casar. Quando se despachou da cozinha, foi para o quarto.
Pai-Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão-nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós temos perdoado a quem nos tem ofendido… Mas livrai-nos do mal. Amém. Quis trocar a ordem das coisas e rezar antes que cheirasse a Sodomas e Gomorras. Mulher prevenida vale por duas. Não. Quem vai para mar avia-se em terra. Sim, foi mais isso. Depois, foi-se arranjar. Esticou o cabelo. Tinha menos dez anos. Deu uma cor aos lábios para as palavras lhe saírem mais bonitas: um vermelho claro. Pincelou as pálpebras, azul-bebé, ao de leve. Vinte anos depois, as hormonas de Maria ressurgiam, multiplicavam-se. E aquele pezinho a marcar o ritmo no chão, farto da espera. Fez uma música. É isso! Fiat Lux! Tinha-se esquecido do principal. Um festim com aquela pujança tinha que ter música. Afastou os sofás, rotos nos braços, e arrumou-os no canto da sala. Pôs-se a sonhar com uma dança. Primeiro um samba, uma salsa, um chá-chá-chá, uma rumba. Depois um tango, uma valsa. Começou a treinar alguns passos, caso o sonho se viesse a concretizar. Também já não dançava desde o dia do casamento.
Às sete e meia em ponto, as madeiras da porta chamaram Maria e disseram-lhe ao ouvido: É ele. A pancada era inconfundível. Dirigiram-se à mesa. Maria não lavava as mãos. Com a ânsia de agradar a ferver-lhe nas entranhas, foi puxar a cadeira, convidando Francisco a sentar-se. Esqueceu-se que aquilo era trabalho para as habilitações dele.
Está bom? Fez que sim com a cabeça e levou a mão à orelha, para lhe dar um puxão ao mesmo tempo que piscava o olho. Se quiseres repete, há aí muito. Gesticulou de novo a cabeça. Agora o sinal foi feito horizontalmente. Maria nem comia. Admirava-o. Aqui para nós: eu acho que ela se estava a guardar para a hóstia. Os copos de vinho não chegavam a secar. Maria era boa de gota. Era verde, com quinze anos. Foi por causa dele que se começaram a rir. Parecia que a uva, quando batia na parede do estômago, lhes fazia cócegas. Houve pouca conversa. Maria tinha pensado em apanhar outra pedra do chão. Ainda fez o gesto. Depois fingiu que tinha perdido um brinco. Até lhe veio a calhar. Francisco levantou-se logo. Não saia dali até ela ter o brinco de volta. Era ouro falso, não valia um centavo. Mas, a preocupação dele fez disparar logo o preço. Foram parar os dois debaixo da mesa. Começaram a dançar de joelhos. Parecia que iam dizer pais-nosso outra vez. Lá fora, o vento parou de correr para se ouvir a melodia. As estrelas apontaram o foco de luz para o centro do palco. O nevoeiro escondeu-se para não embaciar as janelas, por onde espreitavam a lua e o sol, de mãos dadas. O palco estava a ficar pequeno demais. A dança era complexa, tinha muitos passos, rápidos e cheios de genica. O compasso era ternário, o ritmo acelerado. A plateia estava a deixá-los tímidos, sem jeito. Sabiam que não tinham ensaiado nada daquilo. Arriscavam-se a dar uma pisadela, um no outro, ou ele calcar-lhe o vestido e rasgá-lo. O lume apagou-se. Desapareceu o cheiro a lenha queimada.
O corredor, magricelas, levava encontrões e cabeçadas. Nem por isso ficou mais largo. Continuaram agarrados, agora já de pé. Maria sentiu frio. Caíam-lhe, pelo pescoço, pingos de suor. Misturaram-se com os pingos de vinho entornados acima do peito. Transpirava vinho. Francisco impediu que qualquer gota secasse com ósculos famintos. Maria tinha sede. Ele partilhava com ela algumas gotas que sugava. Ao suor e ao vinho juntaram-se os beijos orvalhados. Maria sentiu calor. Francisco não sabia este passo da dança. Pisou-lhe o vestido. Rompeu. O chão ficou mais cheio, com mais peso. Foram montar o palco no quarto. Maria tinha fome. Francisco sabia a… hóstia. A hóstia tinha uma cicatriz. A hóstia gritou: Ave-maria! Nos lençóis ficaram migalhas.

A irmã Clotilde ergueu a vista. O resto da igreja estava de joelhos. Não era para o Senhor. Tinham as cabeças agachadas, envoltas nos braços. Tremiam dos pés ao último fio de cabelo. Quase provocavam um terramoto. Clotilde viu a Virgem em aflição. A figura caiu e ficou estatelada aos pés do Bispo Américo, onde já se encontrava o livro grandalhão. A Virgem jorrava sangue. O Cristo crucificado continuou sem chorar. Américo ainda acreditava que sim. Isto tudo passou-se num segundo.
Ouviu-se um segundo estrondo. Vinha da portada do templo. Clotilde sentiu o cheiro a preto, a meia usada. Estava disfarçado. E tinha a meia na cabeça. A seguir ao estrondo, houve um grito, um pranto, um sufoco. Clotilde viu Américo juntar-se ao livro grandalhão e à Virgem: o livro tinha páginas rasgadas; a Virgem estava cercada de uma substância avermelhada, era o batom de Maria derretido, era o sangue da Virgem; Américo pingava vinho verde.
Clotilde chegou-se perto dele. Foi-se confessar pela última vez. As últimas palavras do padre foram: reza uma ave-maria. Clotilde sangrou lágrimas, salgadas, amargas. Ela não rezou.
O bandido foi-se sentar no banco do jardim. Um polícia passou por lá e ofereceu-lhe algodão doce.
A lua e o sol passaram o resto da noite à gargalhada. A chuva parou.
Lua era sobrenome de Eva, Sol era sobrenome de Adão, Francisco era casado com o evangelho e era sobrenome de Américo.


Conto sujeito a concurso promovido pela Fnac