segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício II

Uma mulher tremendamente determinada e focalizada, obsessivamente, na sua carreira, está no aeroporto quando é anunciado que o voo que a iria levar para o outro lado do mundo, para o encontro mais importante da sua vida profissional até hoje, foi cancelado. O que faz ela agora?





O peido americano



            Ela era Helena. Ele era Camilo, posse dela.
            Camilo tem cu fidalgo. Helena é metade pega, metade esposa dele. Ele bem sabe mas, gosta do bolor a enfeitar as nalgas: compara-as ao Camembert. Esta manhã, as pernas de Helena acordaram para o lado do queijo: tiveram vómitos e desmaiaram. Helena enervou-se. Tinha as pressas a morderem-lhe os minutos do relógio, que avançavam como segundos. Camilo ficou a coalhar nos lençóis.
            O voo estava marcado para as 15:00h. Helena queria apresentar-se na formatura logo às 13:00h. A assiduidade definia-a melhor que o próprio nome, o mérito era o seu pequeno-almoço todos os dias, “dedicação” ocupava-lhe um dicionário inteiro. O taxista elogiou-lhe o par de pernas, ao deixá-la na Portela. Ela foi-lhe dar a gorjeta atrás da porta duma casa de banho.
- Sra. Helena, temos a informar-lhe que, lamentavelmente, o seu voo terá sido cancelado, por motivos ainda a apurar.
- Não posso acreditar! Eu quero falar com o seu superior, exijo que alguém assuma as responsabilidades!
            Tratava-se, provavelmente, do dia mais importante na vida de Helena, talvez, em empate, duvidoso, com o das suas longínquas núpcias. Em boa verdade, nos últimos tempos, a evidência de uma desavença entre casamento e ofício era cada vez maior, com vantagem clara para a segunda, uma vez que, alicerçava, indubitavelmente, a conservação da outra. E, este arranjo, decerto viria colmatar esse desacato, ao mesmo tempo que, acrescentaria, aqui e ali, mais uns rios de bolor ao cu de Camilo – o parasita.
            Helena nunca tinha variado muito de oxigénios: Portugal conhecia-a desde que nasceu, até agora. Não obstante a notável desenvoltura com que acarretava o seu impudico engenho, e o reconhecimento legitimado que se lhe prestava nas hostes elitistas, jamais os seus préstimos haviam sido requeridos por “fomes” transfronteiriças: até hoje! Ir para Itália era, para Helena, como atravessar o globo duma ponta à outra. Mas, a sorte hoje não estava do lado de Berlusconi.
            Num dos televisores do aeroporto ouvia-se da suspeita de uma flatulência nos Estados Unidos. A mulher do check-in reforçou esta tese:
- Sra. Helena, antes de mais, as nossas mais sinceras desculpas pelo sucedido. Acabo de ser informada que tem à sua espera um outro voo, particular, com partida agendada para 5 minutos mais tarde.
            Helena, a pega de luxo, provou, naquela noite, a prosperidade dos lençóis da White House.

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício I

Um dia, chega a casa e começa a ouvir as mensagens que tem no seu gravador de chamadas. Quando chega à terceira mensagem, fica parado, sem reacção. Comece a história a partir daqui. 





Eu disse adeus ao meu pai

           

            Eu pouco ou nada percebia daquela linguagem, apressada e timoneira. Oh homem explique-se lá com calma faça favor: deu-me vontade de dizer. Não sei se pelo tremelico, se pelo atropelamento, se pela combustão, mas aquelas letras soltas, aqueles ditongos de consoantes, aquelas sílabas desordenadas, não formavam palavras inteligíveis.
             Cá, na minha redoma de ignorância, ousei pensar: deve ser chinês, com certeza. Talvez um português achinesado. Quem falava assim era o meu afilhado, com dois anos ainda mal feitos. Considerei essa hipótese: verdade seja dita: é meu afilhado mas é esquisito: em vez das bonecadas, das “petas” (como ele lhe chama porque ainda não é capaz de produzir a sílaba “chu”), das Cerelaques, o miúdo passava o dia agarrado ao maldito telefone. Mas, a esquisitice também não chega a tanto: o tom de voz era arrojado, constituído, varonil, de bagaço: como quem coça a barba de um mês.
            Foram, os primeiros dois minutos, pura barulheira. Eu já tinha ouvido cães a dialogar e lembrei-me disso. Na altura questionei-me se era possível que se percebessem. No latido a seguir, ouvi um sim, então, fiquei aliviado do cruel pensamento de gostar de devorar ossos e perseguir gatos parvos. Porque eu não entendia. Até que, alguns dos latidos começaram a tornar-se palavras corpóreas: ouvi “pai”, ouvi “hora”, ouvi “partir”… Fiz de novo um puzzle, passada meia vida minha: “Pai-hora-partir”? A falta de prática veio ao de cima. “Hora-pai-partir”?
            A alcatifa abraçou-me inteiro. Depois disso, comecei a flutuar no oceano que libertei pelos porões estreitos. Eu queria fazer-lhe uma pergunta, a minha mãe ensinou-me a não falar com desconhecidos. Ele nunca ia ouvir-me perguntar-lhe o nome. Ele sempre soube o meu, sem que tivesse de me perguntar. Ele mesmo me nomeou. No fim do extenso solilóquio, disse que estava a ligar do céu e deixou um post-scriptum verbalizado. Comecei a ouvir as interferências a transfigurar de novo o idioma. Ouvi “voltar”, ouvi “ela”…
            Demorei-me ali uma eternidade incompleta. Acordei, ainda zonzo. O absinto solidificou-se pelo meu corpo. Materializou-se. O coração ardeu-me. Movi-me, ziguezagueando, para o jardim. A minha mãe estava a colher molhinhos de salsa. A salsa condimentou o carinho que trocámos. Disse-lhe: Mãe, amo-te. Colhi-a a ela da terra fértil, peguei nuns molhos de mãe e levei para casa. Comecei a cheirá-la todos os dias.
            Deus desligou o telefone e, a partir dali, a minha mãe dormiu sozinha.


           

             

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O sussurro do Ipiranga

Pela primeira vez, em 41 e 43 anos das suas respectivas vidas, os melhores pai e mãe de que há memória, presenciaram um momento deveras solene, um "marco histórico", como eles mesmos lhe chamaram: os dois sentados no banco de trás do seu próprio carro, com o filho mais velho a conduzi-los e o mais novo em posiçao copiloto. 
Caso, mais que propício, para trazer à tona uma das lengalengas mais lendárias no "reino dos grandes": "parece que foi ontem que andávamos com ele ao colo". "Parece que foi ontem..." A mim custa-me entender que este "ontem" seja tão equivalente ao ontem que digeriu as minhas últimas 24 horas de vida. Eles dizem-no como se assim fosse. E, hoje, eu próprio me senti a envelhecer. 
O caricato da situação foi que, ainda que lhes causasse estranheza, assumiram a sensação de um certo bem-estar. O meu homónimo pai falou em "maior conforto dos bancos traseiros". De facto, o conceito de bom é extremamente instável e imprevisível. Isto porque, no meu pensamento logo me ocorreu a resposta à sua constatação: "Desculpa pai mas, para mim, ir aqui agarrado ao volante sabe muito melhor". Ainda assim, escolhi o caminho do silêncio. Essa discussão não nos ia levar a lado nenhum. 
Então, em lugar de gastar o meu latim morto, tratei de me auto-coroar, aclamar-me rei e, logo ali, reunir a minha corte, enunciar os meus súbditos, calendarizar os meus opulentos banquetes, convidar os saltimbancos, os flautistas, os bobos, os rapsodos. 
Tentei magicar o que fluiria no longínquo e imerso mundo do meu copiloto, revestir-me, de novo, daquelas 12 primaveras com cara de verão de dia, com cara de inverno à noite. Era demais para um momento só. Começou a desenhar-se na minha consciência um sinal de Stop: o controlo podia agora morar nas minhas mãos mas, a experiência estava longe de me pertencer como aos dois que eu mesmo carregava nos ombros. Procurei travar, com o motor, o pedacinho de vaidade que esteve prestes a transbordar. Liguei os 4 piscas, assinalei a minha presença, accionei o travão de mão, soprei o balão e acusou mais de 1,5 g/l de auto-estima. Os agentes de autoridade (PSP: Pais Sempre Presentes) fecharam os olhos. 
No caminho de regresso, para limpar a vergonha que me assombrava e, de alguma maneira, provar que merecia aquela medalha de confiança, aumentei os decibéis do rádio e diminui os decibéis de adrenalina e, voltei, pegado pelo colo.