quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vida durante a morte?

Não sei até que ponto um sonho à noite, a que normalmente chamamos de "simples", "nada mais que isso", pode ser uma amostra da realidade, ou até mesmo ela própria na sua plenitude: esta noite a programação foi um filme de pancadaria do mais reles que já vi, maiores de 18. Porém, por alguma razão que me transcende por completo, acordei com dores no corpo. A ideia de sonambulismo já a pus de parte. Resta considerar a hipótese de estarmos constantemente acordados, só que, durante algumas horas, essa vivência é conteúdo inconsciente e nós damos-lhe o nome de "sonho". A maior implicação de tudo isto seria eu já ter ressuscitado um sem-número de vezes, dada também a quantidade indeterminada de vezes que já "sonhei" que morria.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício V

Imagine que é um prato, pousado em cima de uma mesa. De repente, alguém o parte a meio. Escreva sobre isso – vestindo, sempre, a “pele” do prato.

            No outro dia decidi fazer contas à vida e fui ao registo civil. Fui mudar de nome.
Ando pelos cabelos, ou pelas bordas, com este nome repugnante que não lembra a ninguém. Não aguento mais.

            João Prato De Plástico?!? Sinceramente!

            Enfim, cheguei lá e perguntei se havia nomes bonitos. Disseram-me está já a sair. Estava tão embaraçado que nem fui capaz de verbalizar aquela asquerosidade de nome. Em vez disso, avancei com a certidão de nascimento. Perguntaram-me para que nome queria mudar. Eu disse que não queria mudar. Só queria que me cortassem o De Plástico.
            Agora sim! Agora sim! O que é que pode correr mal agora? Agora sou um dos Pratos! Tenho sangue azul!
            Hoje há sopinha de legumes. Tem é o cu quente: já estou em brasa. Estou vestido com Bacalhau à Brás. É o faminto do Carlos que vai comer de mim. O miúdo tem 7 anos mas come como se tivesse dois estômagos para saciar.  Tenho sempre um medo terrível quando ele me usa. O tacto nas mãos ainda não é apurado. Além disso, a lentidão com que ele come deixa-me nervoso e entediado. E isso faz-me bater o pé e tremer.
            - Mãe, vou pôr mais bacalhau!
Pegou em mim, cheio de brutidade, e assustou-se com o meu tiritar. Sempre sonhei fazer bungee jumping, pensei eu em alto.
            - MAS ERA COM PROTECÇÃOOOO!!!
Tarde demais para conselhos de utilização ou rótulos estampados com “FRÀGIL”… Logo no dia em que me tornei um prato de primeira qualidade fazem-me uma coisa destas. Em escassos instantes, a minha fase de Lua Cheia alterou para dois Quartos: um Crescente, outro Minguante. Não me consigo mexer. Acho que estou tetraplégico. Não me sentia tão triste desde que fui mudado de prateleira, para longe da Rita Prato de Plástico. A minha única esperança é a Super Cola 3. Mas, o que será de mim agora sem o esparguete a escorregar no meu colo, sem o cocorocó defunto do frango assado a sussurrar-me aos ouvidos, sem a piscina de óleo onde as batatas fritas se refugiam do verão…? Nunca quis que o meu nome fosse misturado com a primeira pessoa do verbo partir no indicativo. Eu era um prato, não um parto! Era… Tudo o que rogo agora, ao deus da cerâmica, é que me ofereçam um funeral justo. Não me abandonem aqui: Varram-me… Varram-me… Oxalá ainda fosse um De Plástico…!

domingo, 13 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício IV

Escreva sobre um homem que, naquele dia, decidiu não tomar o pequeno-almoço. 



Luís praticava virgindade há muito tempo. Não sabia se por preferência, se por não ter outro remédio. Digamos que os pais não se esmeraram propriamente naquela noite de cueca para baixo e lá vai disto. Não restam dúvidas de que a pressa e a perfeição não se dão bem. Eufemismos à parte: andam à batatada.
            Luís era valente, de ombros extensos, com uns peitos de fazer inveja à mãe e umas traseiras possantes, que não cabiam no olho de quem as chacoteava. Invocando de novo o registo eufémico: Luís era assim meio para o forte, forte com f grande. Muito embora jejuasse de carnalidades, não era grande adepto de continências no que toca à paparoca. Aparte da afortunada pança, Luís era feiinho e de poucos asseios. 
            Ao atingir a maioridade, a situação começou a deixar os seus pais indignados: “Oh Maria, não era já mais que tempo dele nos aparecer aí com uma desgraçada de esperanças?”. O pai espicaçou-o um sem-número de vezes. Um dia pegou nele e foram juntos a um cabaret que tresandava a libido por todos os lados. Luís, movido pela castidade de uma vida, tapou as narinas com a blusa. Saiu de lá com um fino na goela mas com o pau a seco. Chegaram a levá-lo ao doutor, ele que o visse, que aquilo era coisa de macumbas, que o miúdo não estava bem, que o pai sempre foi macho e garanhão.
            Passaram-se mais 7 anos. Tem ele 25 agora e já há coisa de um mês que, todo o santo dia, à saída da faculdade, uma ninfa de enfermagem lhe pisca o olho. Há-de ser o sol a encandear, pensou ele. Ontem, abordou-o com um aviso estranho: “O teu problema é falta de fome”. E foi-se embora.
            Luís gostava daquele desporto de sair da cama de manhã e ir para a cozinha. Mas, hoje, decidiu não pequenalmoçar. Foi uma estreia absoluta. Nem meia hora depois, começou a sentir náusea, calafrios, pontadas no estômago, falta de sacaroses. Pela primeira vez, sentiu fome.
            Soou a campainha. Era a senhora enfermeira, toda arregalada. A roda dos alimentos começou a girar, os cereais e derivados e os tubérculos perderam o lugar para o coito. Os seios sabiam-lhe a bacon, mas lembravam-lhe alperces, as nádegas tinham um paladar a ovos mexidos, pareciam-lhe ananases, sem os abrolhos. Só nisto, engordou mais 5 quilos. Desde então, Luís fingiu-se enfermo todos os dias.

domingo, 6 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício III

Combine, num único texto, as seguintes palavras: hipócrita, jarro de água, cidade e manteiga.    

           
            A minha avó sempre gostou de cozinhar para mim. Muita culpa tive eu: sempre que me preparava grandes jantaradas, mesmo quando o menu era escasso e humilde, sentava-se, abstendo-se, ao meu lado e via-me deleitado, como se fosse o único a ter acesso ao paraíso, na Terra. Essa era a refeição dela. Já eu tinha os lábios protegidos do suor pelo bigodinho aloirado, e uns rios de penugem, que nasciam abaixo das orelhas e desaguavam perto do queixo, ainda ela guardava um babete na gaveta da cozinha, reservado para mim. Dava sempre jeito. Eu não conseguia esconder a satisfação que aqueles repastos me proporcionavam. E sempre discordei daqueles mentirosos impertinentes que batem, impiedosa e ininterruptamente, no ceguinho com aquela das omeletas não se fazerem sem ovos. Ou tomam juízo de vez, ou arranjem uma avó como a minha.
            A idoneidade dela ia desde os cheeseburgers até ás divinais migas à alentejana. Mas, havia um pitéu que ela me fazia quando sabia que eu estava triste. Nessas alturas dizia-me assim: Vais ver que ficas como novo.
            Eu ria-me. A seguir, entrava nas portadas do éden com aquela salada-russa: era o paladar, a consistência, o secretismo, a boa-disposição. Enquanto me criava, ela brincava com os ingredientes: fazia olhinhos com as ervilhas, punha o atum e as batatas a andar de avião…
            Um dia, quando o rio de penugem chegou à patente de oceano, perguntei-lhe: Vó, como é que se faz a salada-russa?
            Ela fez um trejeito com os sobrolhos de ligeira reprovação e disse: Oh filho, a avó não sabe, inventa. A única receita é não haver receita. Vale tudo.
            Nesse dia, eu fui a pé para casa com versos de Pessoa a fazerem-me companhia: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fiquei desgostoso com aquilo e decidi auto-comiserar-me. Desde aí, comecei um jejum de pívias e salada-russa.
            25 De Abril: Entretanto, hoje, três anos depois, acordei com desejos de grávida. Os meus autores julgaram-me doido. Eu tolerei: lembrei-me de ter pensado o mesmo da minha velhota cozinheira, na altura em que me ensinou a confeccionar a dita salgalhada. Aprontei-me e fui à cidade buscar ingredientes.
            A meio do caminho, telefona-me a minha avó. Impaciente, desboquei-me logo. Pergunta-me ela: Então e como vais fazer filhote?
            Eu mostrei-lhe o bom discípulo que sou e ripostei: Então, arranjo um quilinho de hipócritas, aplico-lhes um jarro de água, deixo-os em banho-maria, unto-os de manteiga e voilà