domingo, 6 de março de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício III

Combine, num único texto, as seguintes palavras: hipócrita, jarro de água, cidade e manteiga.    

           
            A minha avó sempre gostou de cozinhar para mim. Muita culpa tive eu: sempre que me preparava grandes jantaradas, mesmo quando o menu era escasso e humilde, sentava-se, abstendo-se, ao meu lado e via-me deleitado, como se fosse o único a ter acesso ao paraíso, na Terra. Essa era a refeição dela. Já eu tinha os lábios protegidos do suor pelo bigodinho aloirado, e uns rios de penugem, que nasciam abaixo das orelhas e desaguavam perto do queixo, ainda ela guardava um babete na gaveta da cozinha, reservado para mim. Dava sempre jeito. Eu não conseguia esconder a satisfação que aqueles repastos me proporcionavam. E sempre discordei daqueles mentirosos impertinentes que batem, impiedosa e ininterruptamente, no ceguinho com aquela das omeletas não se fazerem sem ovos. Ou tomam juízo de vez, ou arranjem uma avó como a minha.
            A idoneidade dela ia desde os cheeseburgers até ás divinais migas à alentejana. Mas, havia um pitéu que ela me fazia quando sabia que eu estava triste. Nessas alturas dizia-me assim: Vais ver que ficas como novo.
            Eu ria-me. A seguir, entrava nas portadas do éden com aquela salada-russa: era o paladar, a consistência, o secretismo, a boa-disposição. Enquanto me criava, ela brincava com os ingredientes: fazia olhinhos com as ervilhas, punha o atum e as batatas a andar de avião…
            Um dia, quando o rio de penugem chegou à patente de oceano, perguntei-lhe: Vó, como é que se faz a salada-russa?
            Ela fez um trejeito com os sobrolhos de ligeira reprovação e disse: Oh filho, a avó não sabe, inventa. A única receita é não haver receita. Vale tudo.
            Nesse dia, eu fui a pé para casa com versos de Pessoa a fazerem-me companhia: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fiquei desgostoso com aquilo e decidi auto-comiserar-me. Desde aí, comecei um jejum de pívias e salada-russa.
            25 De Abril: Entretanto, hoje, três anos depois, acordei com desejos de grávida. Os meus autores julgaram-me doido. Eu tolerei: lembrei-me de ter pensado o mesmo da minha velhota cozinheira, na altura em que me ensinou a confeccionar a dita salgalhada. Aprontei-me e fui à cidade buscar ingredientes.
            A meio do caminho, telefona-me a minha avó. Impaciente, desboquei-me logo. Pergunta-me ela: Então e como vais fazer filhote?
            Eu mostrei-lhe o bom discípulo que sou e ripostei: Então, arranjo um quilinho de hipócritas, aplico-lhes um jarro de água, deixo-os em banho-maria, unto-os de manteiga e voilà

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