segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - Exercício I

Um dia, chega a casa e começa a ouvir as mensagens que tem no seu gravador de chamadas. Quando chega à terceira mensagem, fica parado, sem reacção. Comece a história a partir daqui. 





Eu disse adeus ao meu pai

           

            Eu pouco ou nada percebia daquela linguagem, apressada e timoneira. Oh homem explique-se lá com calma faça favor: deu-me vontade de dizer. Não sei se pelo tremelico, se pelo atropelamento, se pela combustão, mas aquelas letras soltas, aqueles ditongos de consoantes, aquelas sílabas desordenadas, não formavam palavras inteligíveis.
             Cá, na minha redoma de ignorância, ousei pensar: deve ser chinês, com certeza. Talvez um português achinesado. Quem falava assim era o meu afilhado, com dois anos ainda mal feitos. Considerei essa hipótese: verdade seja dita: é meu afilhado mas é esquisito: em vez das bonecadas, das “petas” (como ele lhe chama porque ainda não é capaz de produzir a sílaba “chu”), das Cerelaques, o miúdo passava o dia agarrado ao maldito telefone. Mas, a esquisitice também não chega a tanto: o tom de voz era arrojado, constituído, varonil, de bagaço: como quem coça a barba de um mês.
            Foram, os primeiros dois minutos, pura barulheira. Eu já tinha ouvido cães a dialogar e lembrei-me disso. Na altura questionei-me se era possível que se percebessem. No latido a seguir, ouvi um sim, então, fiquei aliviado do cruel pensamento de gostar de devorar ossos e perseguir gatos parvos. Porque eu não entendia. Até que, alguns dos latidos começaram a tornar-se palavras corpóreas: ouvi “pai”, ouvi “hora”, ouvi “partir”… Fiz de novo um puzzle, passada meia vida minha: “Pai-hora-partir”? A falta de prática veio ao de cima. “Hora-pai-partir”?
            A alcatifa abraçou-me inteiro. Depois disso, comecei a flutuar no oceano que libertei pelos porões estreitos. Eu queria fazer-lhe uma pergunta, a minha mãe ensinou-me a não falar com desconhecidos. Ele nunca ia ouvir-me perguntar-lhe o nome. Ele sempre soube o meu, sem que tivesse de me perguntar. Ele mesmo me nomeou. No fim do extenso solilóquio, disse que estava a ligar do céu e deixou um post-scriptum verbalizado. Comecei a ouvir as interferências a transfigurar de novo o idioma. Ouvi “voltar”, ouvi “ela”…
            Demorei-me ali uma eternidade incompleta. Acordei, ainda zonzo. O absinto solidificou-se pelo meu corpo. Materializou-se. O coração ardeu-me. Movi-me, ziguezagueando, para o jardim. A minha mãe estava a colher molhinhos de salsa. A salsa condimentou o carinho que trocámos. Disse-lhe: Mãe, amo-te. Colhi-a a ela da terra fértil, peguei nuns molhos de mãe e levei para casa. Comecei a cheirá-la todos os dias.
            Deus desligou o telefone e, a partir dali, a minha mãe dormiu sozinha.


           

             

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